Em seu terceiro álbum, ‘Cabeça a Mil e o Corpo Lento’, músico e compositor carioca mostra lado mais autoral sem amarras: ‘um disco muito pessoal, muito íntimo’. Saiba como foi criado
por_Leonardo Lichote • do_Riofoto_Flávio Marques
por_Leonardo Lichote • do_Riofoto_Flávio Marques
A imagem do título já diz muito: o corpo atravessado por um tempo travado — pandemia, isolamento, desorientação — e a mente como bicho solto, criando paisagens, conexões, fuga. “Cabeça a Mil e o Corpo Lento” (Selo Risco), novo disco de Alberto Continentino, é um espelho desse período que ainda não foi plenamente decifrado. O baixista e compositor faz sua parte, transmutando a sensação em sons e versos que carregam de alguma forma toda sua história até aqui.
“Cabeça a Mil e o Corpo Lento” é o terceiro álbum solo do baixista e compositor. Mas talvez seja o primeiro em que ele soa como quem é só, sem os filtros e formatos pensados para outros. Um disco que se revela em fluxo, feito de paisagens sonoras que não querem entregar um destino, mas um estado.
"Acho que é um momento muito introspectivo, é muito eu tentando encontrar mesmo o meu som. Tentando tirar os maneirismos, a parte racional”, explica Alberto. “Eu escuto muita música, sou meio tarado nisso, e acho que a pandemia proporcionou que eu colocasse pra fora o que estava dentro de mim. É um disco muito pessoal, muito íntimo. Não sei o quanto conversa com o que está rolando, mas é muito eu.”
Alberto tocou, além do baixo, piano, synths, Rhodes, Wurlitzer, clavinete, percussão eletrônica e violão. Em alguns casos, gravou várias camadas no mesmo dia, como se estivesse desenhando o arranjo em tempo real sobre a própria melodia.
ELO ENTRE GERAÇÕES
Nascido em uma casa onde a música era língua materna — filho dos pianistas Mauro Continentino e Marisa Gandelman, sobrinho de Leo Gandelman e irmão de Kiko e Jorge Continentino —, Alberto foi desde cedo atravessado pelas melodias e harmonias. Começou no violão, aos 9, tentando tocar “Brasileirinho”; foi ao baixo pouco depois, chamado por um irmão para completar uma banda. Ainda adolescente, já tocava com nomes como Mauro Senise e Milton Nascimento. Virou baixista de Caetano Veloso aos 20. Com o tempo, tornou-se uma presença discreta, mas essencial, no subsolo da nova música brasileira — um elo entre gerações, entre o jazz e o pop, entre o clássico e o inventivo.
“Cabeça a Mil e o Corpo Lento” reafirma isso tudo ao mesmo tempo em que aponta para outras direções. Afinal, parte de um mergulho mais solitário. É um disco feito sem demanda (“encomendei um disco pra mim mesmo”, como ele diz), nascido da quietude forçada da pandemia. O isolamento serviu de laboratório para uma espécie de reinvenção de seu método. Alberto abriu mão de compor a partir da melodia para, pela primeira vez, se deixar levar pela palavra: pediu letras a parceiros diversos — Ana Frango Elétrico, Domenico Lancellotti, Silvia Machete, Tomás Cunha Ferreira, Negro Leo, Kassin, Nina Becker, Gabriela Riley, Quito Ribeiro, Rodrigo Cabelo, Jonas Sá e Laura Eber — e fez questão de que elas chegassem livres, sem exigência de formato, idioma ou clareza. Letra como semente, não como molde. Palavra como som, não como mensagem:
O disco também se aproxima do universo das artes visuais — não por acaso, vários parceiros de letra, como Cabelo e Gabriela Riley, têm vínculos com as artes plásticas, o que colabora para o tom imagético e sensorial dos versos.
“Eu estava num certo bloqueio de compor uma melodia do nada. O nada não estava me dizendo nada”, diz Alberto. “Gostei de moldar as melodias a partir da ideia poética. Isso também tira uma certa formalidade de canção. A letra, quanto mais irregular ela é, mais cria a necessidade de uma melodia irregular, que não se repete, que vai indo, sem fórmulas. Me afasta do tradicionalismo.”
VERNIZ ESCURO
Esse abandono do formalismo parece se ligar a algo mais profundo: uma tentativa de encontrar um caminho próprio, menos atrelado à tradição da MPB ou às referências harmônicas dos anos 1970, que são formadoras de sua música. Alberto não as rejeita — elas são dele, estão em seus dedos, em seu ouvido. Mas, neste disco, ele tenta filtrá-las por outra lente, mais opaca, mais silenciosa. Um verniz mais escuro, como ele define. “Meu primeiro disco, ‘Ao Som dos Planetas’, tinha uma coisa de beleza, de alegria, solar. ‘Ultraleve’, o segundo, também tem uma suavidade. Agora eu tentei dar um verniz um pouquinho mais escuro. Amadurecer pra esse caminho também. As músicas não são tristes, mas estão num tempo um pouquinho mais nublado, cinzento.”
Se “Cabeça a Mil e o Corpo Lento” é um disco de autor, ele também é, por natureza, um disco de encontros. A delicadeza do resultado se deve, em grande parte, à escuta compartilhada que se estabeleceu entre Alberto e os músicos que o acompanharam nas gravações. Entre eles, nomes como Thomas Harres, Guilherme Lirio, Vitor Cabral, Guilherme Monteiro, Caio Oica e Danilo Andrade formam uma base que se alterna com precisão e liberdade, cruzando o jazz, o funk, o pop. Nos sopros, Joana Queiroz, Marlon Sette, Diogo Gomes e Jorge Continentino ajudam a esculpir as atmosferas com texturas cinematográficas.
VOZES FEMININAS
Nas vozes convidadas, um elenco afinado não apenas em timbre, mas em espírito: Dora Morelenbaum, Ana Frango Elétrico, Leticia Pedroza, Gabriela Riley, Silvia Machete, Nina Becker, Nina Miranda e Joanna Halszka Sokolowska. “Quando imaginava as canções, ouvia mais a textura da voz feminina”, conta Alberto. Não houve intenção programada, mas o resultado é eloquente: todas as participações vocais no disco são de mulheres — e cada uma deixa um rastro único.
A faixa de abertura do disco, “Ovo do Sol”, é uma espécie de manifesto atmosférico. Com letra de Domenico Lancellotti, traça uma travessia interplanetária com imagens que misturam o cósmico ao carnal — “rio de Mercúrio”, “perna de Marte”, “nudez de Vênus”. Alberto comenta: “A letra tem uma coisa espacial, volta à ideia dos planetas que está no meu primeiro disco. É engraçado, não é proposital, mas as pessoas para quem eu peço letras escrevem muito sobre o mar, sobre o espaço, tem essa coisa superabstrata.”
A melodia e o arranjo seguem essa mesma vibração lisérgica, construindo um clima etéreo em que o groove funciona como gravidade. É o início do mergulho: um voo sem pouso certo, mas com rota sensorial definida.
Já “Coral” é uma música marinha, sem litoral. Clarone, sintetizadores, percussões sutis e a voz de Dora Morelenbaum soam como sons submersos em um oceano imóvel. Dora representa mais do que uma convidada: é a conexão afetiva com a geração do Bala Desejo, com quem Alberto se encontrou nos últimos anos. “Ela tem uma carga de intensidade, ao mesmo tempo em que canta suave. Tudo no lugar, tudo na medida. Ela entrou no estúdio, começou a cantar, eu já fiquei todo arrepiado, me segurando pra não chorar.”
Da água novamente para o espaço: “Milky Way” se ergue sobre dois baixos e um groove funkeado, cortado por coros etéreos de Leticia Pedroza. A letra tem apenas alguns versos, e Alberto constrói em cima deles uma canção pop e espacial, dançante e estranha. “Quando recebi, pensei: ‘caramba, como é que eu vou fazer isso aqui?’. Decidi então construí-la sobre um groove. Ficou mais pop, funkeada.”
A cantora Leticia Pedroza, que participa de “Milky Way”, foi apresentada a Alberto por Kassin, que há alguns anos a convidou para fazer os vocais de um disco que eles gravaram na Polônia. Alberto explica que ele e Kassin mantêm uma espécie de “sucursal artística” lá, com eventuais gravações e parcerias com músicos locais.
“Cerne” traz metaleira nervosa, groove à la Azymuth, unindo suingue e sabedoria: “nem pra mim, nem pra você”, dizem os versos de Quito Ribeiro. Já “Manjar de Luz”, com letra de Ana Frango Elétrico (também nos vocais), traz o verso que dá nome ao disco: “cabeça a mil e o corpo lento”. Síntese involuntária do estado pandêmico — e do disco inteiro. A levada sincopada, a melodia falada, os coros costurados, tudo parece responder a esse desequilíbrio entre o pensamento e o gesto, entre o impulso e a paralisia. É um momento de suspensão: a canção não se resolve — paira.
“Cerne” começou como um samba com violão de nylon, “meio Jards Macalé”, gravado em Araras (Serra do Rio de Janeiro), mas acabou ganhando nova versão mais funk e pesada em São Paulo. “Ela tinha ficado muito diferente das outras, acabou destoando. Acabei gravando de novo com a galera lá em São Paulo. E aí ela ficou um pouco mais funkeada”, conta Alberto.
“Go Get Your Fix”, com letra e voz de Gabriela Riley, nasceu dentro do metrô de Chicago e se impõe como uma das faixas mais rítmicas e contemporâneas do álbum. “Tem um momento que eu identifico um pouco com bebop: rápido, letra rápida, com muita nota. Algo que eu dificilmente faria pra outra pessoa cantar. É muito a minha cara”, avalia Alberto.
PRODUÇÕES CUIDADOSAS
“Uma Verdade Bem Contada” é uma das faixas mais meticulosamente produzidas do disco. A composição é de Alberto com Kassin, que também divide a produção e assina a mixagem ao lado de Mário Caldato. “Tentei produzir essa música em Araras (RJ), depois em São Paulo, e não consegui. Aí pedi um 'help' pro Kassin, e fizemos no estúdio dele”, conta Alberto.
A gravação do disco se dividiu entre três estúdios: Rocinante, em Araras (RJ), Buena Familia, em São Paulo, e Marini, no Rio, sendo este último reservado à faixa “Uma Verdade Bem Contada” — única em que Kassin atuou também como produtor ao lado de Alberto. Já a mixagem foi assinada por Kassin e Mário Caldato em quatro faixas: “Milky Way”, “Go Get Your Fix”, “False Idol” e “Uma Verdade Bem Contada”. As outras oito ficaram a cargo apenas de Kassin, garantindo unidade estética mesmo na diversidade de sonoridades.
A faixa reúne ainda Nina Miranda e Joanna Halszka Sokolowska nos vocais. A letra, elegante e sintética, fala de ilusão e permanência, numa fluência que lembra funk, sem se tornar propriamente dançante. Suburbana e espacial, “o baile segue”, dizem os versos — e a canção parece levitar entre o concreto e o delírio, conduzida por sopros sutis e groove encorpado.
“False Idol”, com letra de Silvia Machete, é uma bossa nova desidratada, sem clichê, com Rhodes e guitarra no lugar do violão. “Silvia me mandou essa letra meio dor de cotovelo, e eu resolvi fazer uma bossa nova. Mas com aquele desafio de não fazer uma bossa com violão, uma coisa meio careta. Ficou essa bossa nova bem estilizadona, darkzinho de leve, soturna, vazia”, define o baixista.
Silvia Machete foi a primeira cantora a gravar uma música de Alberto. O processo de composição com ela é descrito por ele como um dos encontros mais férteis de sua trajetória: “De composição, de entendimento, de afinidade”.
“A Palavra Rio” é surrealismo sonoro, filme em loop, verso que vira imagem, imagem que vira som. “Cabelo encontrou um e-mail seu pra alguém, falando sobre poesia. Então é uma letra sobre poesia. Uma letra cheia de imagens, eu quase vejo um filme”, conta Alberto.“Negrume”, com letra de Jonas Sá, é a canção mais lenta do disco. Três instrumentos, uma tristeza contida, um cão perdido que continua a andar . “Vieux Souvenir”, em francês, traz Serge Gainsbourg no horizonte, mas sem sussurros gratuitos. É memória soterrada, delicadamente recuperada.
A letra de “Negrume”, escrita por Jonas Sá, foi inicialmente pensada para um projeto infantil, mas acabou sendo considerada “boa demais” para esse contexto. Alberto resolveu compor uma nova música para os versos, e assim nasceu a faixa.
Primeira faixa composta para o disco, “Madrugada Silente” abriu a trilha criativa que “Cabeça a Mil e o Corpo Lento” viria a seguir — embora, no álbum, apareça como espécie de epílogo. A letra, de Negro Leo, tem um lirismo rarefeito e íntimo, que Alberto escolheu tratar com discrição: percussão eletrônica, texturas quase estáticas, voz como murmúrio. O arranjo não cresce, não explode — respira. Há ali o embrião do disco inteiro: a sugestão de que menos é mais, de que o silêncio também compõe. Tudo já está dito — e quase nada é falado.
UM SONHO
Todo o disco parece atravessado por uma lógica de sonho. Um sonho que não precisa se explicar. Alberto, que sempre escutou mais a música do que a letra, aprendeu aqui a escutar a letra como música — e isso é tudo. Ao longo das gravações, feitas em três estúdios e com diferentes formações, ele foi ajustando as cores, os timbres, os arranjos. Gravou parte das vozes em seu quarto, muitas das participações vieram por internet, em camadas que se somaram à distância. A tecnologia serviu à escuta — e não o contrário.
“Não sou cantor, mas tenho minha maneira de cantar. Usei recurso de dobras e coros, coloquei a voz como mais um instrumento, uma camada entre coisas outras que estão acontecendo”, conta o músico. E é assim que “Cabeça a Mil e o Corpo Lento” se revela: como um disco em que cada camada é uma fresta, uma dobra, um desvio. Um disco que escapa por entre os dedos — e que talvez por isso mesmo permaneça. Um álbum que soa como um sussurro denso, um convite para ficar mais um pouco dentro dele. Não se impõe — insinua. Ali, entre a névoa e o silêncio, Alberto encontra seu lugar: um território próprio onde a escuta é invenção. •