Quatro mulheres expoentes do rap nacional abrem o verbo sobre os desafios e as delícias de desbravar um mercado ainda machista
por_Letícia Taets Lira • do_Rio
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Os 10 rappers mais populares do Brasil somam 100 milhões de ouvintes. Segundo um relatório de novembro de 2024 do Spotify, os 10 são homens. Mesmo assim, o copo é meio cheio para quem, como MC Soffia, testemunhou cena pior.
Souto MC
“Acho que deu uma melhorada por conta da luta das mulheres, agora podemos estar nos espaços. Quando eu comecei a me apresentar, cansei de ouvir: ‘Menina cantando rap? Nunca vi!”, lembra a rapper paulistana, que começou aos 6 anos e estourou aos 12, com o hit “Menina Pretinha”.
Slipmami, natural de Duque de Caxias (RJ) e sucesso nas redes sociais, também vê melhoras. Ainda tímidas.
“Algumas coisas avançaram, sim, mas passinhos de tartaruga... Eu vejo um mercado que, para as mulheres, ainda é muito hostil. Às vezes, é meio como se as próprias mulheres protegessem o que elas já conquistaram. Acho que falta esse espaço para virem outras artistas mulheres e terem chance na cena também”, analisa.
Chance e oportunidades iguais. Mulheres e homens nem de longe recebem os mesmos cachês.
“No geral, é uma indústria que precisa, ainda, galgar alguns degraus para se tornar uma máquina de fazer dinheiro que nem é lá fora. Acho que a meta é essa: transformar o rap nacional em uma máquina de fazer dinheiro, como nos Estados Unidos. E isso está rolando já para alguns caras aqui no Brasil, mas, pra mulher, não. Faltam muitas coisas, mas, em comparação ao que era 5 anos atrás, já está bem melhor”, descreve Slipmami.
Souto MC, paulistana da Penha com mais de uma década de carreira, arremata:
“De fato, existe uma mudança de perspectiva, uma mudança de postura (desde o início da carreira)... que parte das mulheres. E justamente por partir somente de nós é que essas mudanças acontecem de forma mais lenta, de menor proporção. Tendo em vista o que o rap representa hoje em termos de lugares a que ele chegou, se nós tivéssemos esse impulso partindo de homens de grandes indústrias, isso seria muito maior do que é hoje.”
KING Saints, conterrânea de Slipmami, participou do Songcamp Por Elas que Fazem a Música de 2024 e já compôs para nomes como Luísa Sonza e IZA. Hoje, ela trilha a carreira solo e reforça o ponto:
O Songcamp Por Elas que Fazem a Música é uma iniciativa da UBC para incentivar a criação e cooperação entre mulheres criadoras. Em 2024, 10 mulheres se reuniram no estúdio Sonastério, em Minas Gerais, com a meta de criar uma canção durante o encontro. Os episódios estão disponíveis no canal do YouTube da UBC.
“Quando a gente decide estar no rap e fazer parte do movimento hip hop, estar em um movimento periférico, de raiz negra, a gente sabe que vai ter aí várias barreiras a enfrentar. Estando como mulher, então, é mais uma barreira que a gente tem que enfrentar ali, tanto interna quanto externamente.”
Souto traz uma reflexão forte:
“Pura e simplesmente o óbvio precisa ser dito. Por exemplo: ‘Estou indo ao seu estúdio para trabalhar, não estou indo ao seu estúdio pra transar com você. Não estou interessada em ficar com você, porque a partir daí a minha música pode alcançar lugares...’”
A COLETIVIDADE IMPORTA
KING Saints
Na batalha há já 15 anos, apesar de ter apenas 21, Soffia credita ao rap tudo o que o conquistou na carreira:
“Pra mim, é aprendizado: o rap é minha creche, minha escola, minha faculdade... mudando minha forma de rimar e entender mais sobre o movimento. Muita coisa mudou: o público foi envelhecendo comigo, fui conquistando novos públicos. Sempre vivendo do movimento hip hop.”
A importância da coletividade para o rap é reforçada por Slipmami, que enfatiza o quanto o movimento é relevante para a cultura negra brasileira:
“Ter essa cultura (hip hop) aqui no Brasil é muito importante. O Brasil é um país muito racista, e eu gosto de estar nesse movimento até mesmo pra tentar espalhar um exemplo positivo pra outras 'minas' pretas. Até pelo rap ser da cultura preta... eu gosto muito disso.”
PRA ONDE ELAS VÃO?
Diante de um cenário desafiador como o posto para as rappers, o que pode ser feito? Por onde começar mudanças duradouras que fortaleçam de fato as mulheres em seus trabalhos e suas lutas?
Na visão de MC Soffia, para que mais mulheres estejam no rap é necessário haver mais investimento em diversas frentes:
“Tem que existir cada vez mais investimento: em oficinas, em Fábricas de Cultura. Investir na periferia mesmo. Também (o rap) estar nas escolas, nos livros didáticos... É um trabalho de base importante. É importante também as mulheres se unirem e os homens chamarem mulheres pros feats e festivais.”
As Fábricas de Cultura são espaços de acesso gratuito que promovem diversas atividades artísticas em São Paulo, gerenciadas pela Secretaria de Cultura do estado. Criadas com o objetivo de ampliar o conhecimento cultural por meio da interação com a comunidade, as Fábricas oferecem uma programação cultural diversificada para a população.
Já KING Saints traz a importância do dinheiro.
“Eu acho que muitas coisas precisam ser feitas no âmbito de sociedade no geral. O que a gente discute é que existam projetos que incentivem financeiramente. Porque eu acho que um grande problema que a gente tem aqui é financeiro”, pondera. “Quando a gente olha pro maior rapper do Brasil e pra maior rapper do Brasil, financeiramente essas pessoas estão completamente distantes. A própria UBC tem esse relatório (o Por Elas Que Fazem a Música) em que você vê como é discrepante.”
O relatório "Por Elas Que Fazem a Música" é um levantamento anual pioneiro realizado pela UBC que busca compreender a participação feminina no mercado musica, realizado desde 2018 e publicado todo mês de março. Todos as edições estão disponíveis no site da UBC.
Souto MC fecha trazendo a importância da união entre mulheres:
“Eu acho muito massa esse movimento que está rolando entre mulheres de se gravarem, de fazer feats entre nós mesmas, é importante pra que a gente fortaleça a rede de mulheres. E não falo só de mulheres MCs, mas também de bastidores: produtoras musicais, grafiteiras... Na arte como um todo. Que a gente possa realmente fortalecer essa rede.”
Elas já chegaram longe, mas querem ir cada vez mais além. Ainda bem. •